Capital enfrenta surto persistente de hepatite A
Com cerca de 100 casos neste ano, PBH busca causas da escalada, iniciada em 2024, e tenta conter avanço com vacinação de grupos de risco
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Siga noBelo Horizonte vive um surto de hepatite A neste ano, doença que causa uma inflamação aguda no fígado. Ainda sem um diagnóstico sobre o que motivou a escalada das infecções, o município, que concentra quase 80% de todos os casos em Minas Gerais, acionou o Ministério da Saúde e agora um relatório conclusivo deve ser finalizado até a segunda quinzena de junho. O volume de notificações na capital mineira já supera mais da metade do total registrado ao longo de todo o ano ado.
Transmitida principalmente pela ingestão de água ou alimentos contaminados por fezes de pessoas infectadas, a doença contabilizou 95 casos confirmados em Belo Horizonte entre janeiro e abril deste ano, um crescimento de 265,3% em relação aos 26 registrados no mesmo período do ano ado. Outros cinco diagnósticos foram feitos até 18 de maio. Em Minas Gerais, até março, foram confirmados 103 casos de contaminação, dos quais 80 ocorreram em Belo Horizonte, o que representa 77,6% do total no estado, segundo dados fornecidos à reportagem pela Secretaria Municipal de Saúde e pela Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG).
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As autoridades de saúde dizem que ainda não conseguiram identificar o que causou esse surto. Em entrevista ao Estado de Minas, o gerente da vigilância epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde, Hoberdan de Oliveira, confirma que há uma mudança importante no comportamento da doença na cidade desde o fim de 2023. “Os dados ultraam a série histórica que temos de outros anos”, observa.
Comparado a 2023, BH teve um crescimento superior a 20 vezes em apenas um ano: foram apenas oito registros ao longo de 2023, contra 175 em 2024. Dados da Secretaria Municipal de Saúde mostram ainda que entre o primeiro e o segundo semestre de 2024, os diagnósticos da doença saltaram 260,5%.
Com a disparada de casos, a prefeitura notificou a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) e o Ministério da Saúde para investigar a causa. A análise deve ter um relatório conclusivo até a primeira quinzena de junho. “Ainda precisamos entender essa alteração epidemiológica do número de casos para podermos traçar estratégias, que já estão sendo feitas na vacinação, e tentar reduzir isso a níveis bem baixos como era anteriormente”, afirma o gerente da vigilância epidemiológica. A reportagem procurou o Ministério da Saúde e a SES-MG, mas até o fechamento desta edição não houve retorno.
Perfil e estratégias
Por ora, o perfil epidemiológico aponta para uma predominância da doença entre homens de 20 a 39 anos. No entanto, as autoridades reforçam que ainda não identificaram um fator específico que explique o aumento tão expressivo dos casos. “Não temos nenhum dado preliminar em relação à provável causa ou fator associado a esse aumento do número de casos. Continuamos monitorando, mas somente após a análise do Ministério da Saúde é que poderemos realmente atualizar as maiores informações”, explica.
Enquanto as causas seguem sob investigação, a vacinação é colocada como a principal ferramenta de contenção do surto. Em situações como a atual, o Ministério da Saúde recomenda imunizar os familiares e parceiros sexuais de pessoas infectadas. “Realizamos busca ativa, contatamos os pacientes diagnosticados e orientamos seus contatos próximos a se vacinarem o mais rapidamente possível”, explica Hoberdan de Oliveira, destacando que o monitoramento dos casos permanece para evitar o avanço da enfermidade.
Em nível nacional, o Ministério da Saúde ampliou, no início deste mês, a vacinação contra hepatite A para pessoas que utilizam a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), uma medicação preventiva contra o HIV. A medida foi motivada pelo reconhecimento de que, embora a transmissão fecal-oral seja a via predominante do vírus, práticas sexuais também podem aumentar o risco de infecção. A meta é imunizar 80% dos mais de 120,7 mil usuários da PrEP atendidos atualmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Tradicionalmente associada à infância em locais com saneamento precário, a hepatite A agora preocupa também pela transmissão sexual. “A hepatite viral pode ser transmitida por diferentes vias. Os vírus B e C, por exemplo, são transmitidos pelo contato com sangue contaminado, o que pode ocorrer em relações sexuais, transfusões sanguíneas, lesões ou procedimentos cirúrgicos e odontológicos com instrumentos não devidamente esterilizados. Já a hepatite A é transmitida por via fecal-oral, o que hoje já vemos uma crescente associada a práticas sexuais com risco de contato fecal-oral”, explica o infectologista Leandro Curi.
A Organização Mundial da Saúde já havia identificado, em 2016, um aumento global de casos vinculados a esse tipo de exposição. No Brasil, a mudança de perfil foi observada pela primeira vez em 2017, em São Paulo, com 786 diagnósticos e dois óbitos confirmados. Desde então, autoridades sanitárias intensificaram a recomendação de vacinação para grupos vulneráveis e reforçaram campanhas de prevenção voltadas à prática sexual segura.
A doença
A hepatite A é uma inflamação viral do fígado, mas o termo “hepatite” abrange diversas etiologias. O infectologista Leandro Curi lembra que a hepatite A, embora seja causada por vírus, não é a única forma de inflamação hepática. “A inflamação do fígado também pode ter outras origens, como bactérias, protozoários ou agentes não biológicos, como medicamentos, substâncias químicas e doenças autoimunes. Por isso, o termo ‘hepatite’ é amplo”, explica.
Do ponto de vista clínico, embora a hepatite A não evolua para quadros crônicos — como ocorre com as hepatites B e C —, ela pode levar a complicações severas. “Ainda que tenha uma evolução melhor, o tipo A acaba sendo o principal vilão porque pode causar uma inflamação fulminante ou falência aguda do fígado. Ela pode evoluir para casos em que há comprometimento do fígado. E o paciente pode precisar de um transplante”, adverte o infectologista.
Enquanto em crianças a infecção costuma ser assintomática ou apresentar sintomas leves, em adultos a resposta imunológica é mais intensa, o que aumenta a gravidade dos quadros e a probabilidade de complicações. Náuseas, vômitos, dor abdominal e icterícia (coloração amarelada da pele e dos olhos) são alguns dos sinais mais comuns. Apesar de, na maioria das vezes, evoluir para a cura espontânea, a doença que não tem tratamento específico pode, em alguns casos, exigir internação e até transplante.
O agravamento tende a ocorrer principalmente em idosos, portadores de doenças crônicas ou pessoas imunossuprimidas, como as que vivem com HIV. Nessas populações, a resposta imunológica mais intensa pode gerar quadros clínicos mais severos. De acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que apenas 1% dos casos represente risco de morte, quando evolui para hepatite fulminante.
Prevenção
Sem tratamento antiviral específico, o manejo da hepatite A baseia-se no e clínico – hidratação, repouso e alívio dos sintomas. “Por isso, a vacinação e as medidas preventivas são fundamentais”, reforça Leandro Curi. Além da imunização, recomenda-se ferver água, higienizar alimentos e manter práticas adequadas de saneamento e higiene.
A introdução da vacina contra hepatite A no Sistema Único de Saúde (SUS), em 2014, foi um divisor de águas no combate à doença no Brasil. Direcionada a crianças de 12 meses a menores de 5 anos, a imunização provocou uma redução expressiva nos casos: de 6.261 registros em 2013 para apenas 437 em 2021, uma queda de 93%. Entre menores de 5 anos, a redução foi ainda mais drástica: 97,3% em uma década. Na faixa etária de 5 a 9 anos, o decréscimo chegou a 99,1%.
“O sucesso da vacinação infantil contra a hepatite A é um exemplo claro da eficácia das vacinas. A experiência mostra que a vacinação pode reduzir drasticamente a incidência da doença, protegendo inclusive os adultos, que têm sido mais suscetíveis à doença”, destaca Leandro Curi. Atualmente, além da rede pública, as vacinas contra hepatite A e B estão disponíveis na rede privada, inclusive em formulação combinada, que protege contra ambos os tipos em menos aplicações.
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Problema nacional
O surto em Belo Horizonte reflete uma preocupação nacional. Segundo dados do Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais, publicado no ano ado pelo Ministério da Saúde, os casos de hepatite A vêm aumentando expressivamente em todo o país, especialmente entre adultos. De 2022 para 2023, o Brasil viu o número de diagnósticos saltar de 856 para 2.081, uma alta superior a 140%. O recorte etário chama atenção: 1.877 dos casos registrados em 2023 ocorreram em pessoas acima dos 20 anos, sendo que aproximadamente 70% eram homens.
Outras cidades brasileiras também lidam com o avanço da doença. Em Curitiba, por exemplo, foram registrados 272 casos entre janeiro e maio do ano ado, além de um transplante hepático e cinco óbitos associados ao vírus A da hepatite.