Tese liga o maior crítico brasileiro ao maior cineasta mineiro
Texto em que Paulo Emílio Sales Gomes analisa o cinema de Humberto Mauro é reeditado pela Companhia das Letras. Trabalho identificou minutos inéditos de filme
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A incapacidade criativa em copiar era a grande qualidade do cinema de Humberto Mauro (1897-1983). A frase, de Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), é utilizada por seu discípulo, o professor, diretor e ensaísta Carlos Augusto Calil para falar não só sobre o legado do pioneiro cineasta mineiro, como também sobre o cinema nacional.
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“Como manter sua característica nacional e se inserir no plano internacional é uma questão até hoje não resolvida (pela produção brasileira). Na medida em que (o cinema de Mauro) não copiava, ou não conseguia copiar o estrangeiro, entrava o Brasil, entrava Cataguases pela fresta”, diz Calil, à frente de um projeto de vulto – e que está vindo a público a conta-gotas.
Neste ano, completa-se uma década desde que a Companhia das Letras deu início ao relançamento da obra de Sales Gomes, o maior intelectual brasileiro dedicado ao estudo do cinema. Aos três títulos já lançados se soma agora o quarto, e o trabalho de maior vulto empreendido por Calil.
Realizado em parceria com a Cinemateca Brasileira e Sociedade Amigos da Cinemateca, o volume “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” celebra os 50 anos da tese de doutorado de Sales Gomes, defendida em 1972, na USP, e publicada dois anos mais tarde em livro.
É uma obra com duas histórias. A primeira, obviamente, é a da tese. Professor da Universidade de São Paulo desde 1966 – no início como colaborador do Departamento de Teoria Literária e, a partir de 1968, como docente do curso de cinema –, para ser efetivado na instituição, teve que fazer um doutorado.
“Vergonha”
Naquela altura, Sales Gomes já havia realizado cursos e seminários em torno da obra de Mauro, que havia conhecido pessoalmente em 1940. Na época, não deu muita bola, “para minha vergonha, o cinema brasileiro não me interessava”. Muitos anos depois, como professor, sempre que falava de Mauro, “a primeira fase, a de Cataguases, eu sentia escapar entre meus dedos”.
Definido o tema, ele levou sete anos para concluir a tese. No estudo, ele investiga, em detalhes, a fase inicial do cineasta em Cataguases (a vida da cidade da Zona da Mata, e seus personagens, estão nos primeiros capítulos), onde foram rodados seus quatro primeiros longas-metragens: “Na primavera da vida” (1927, desaparecido), “Thesouro perdido” (1927), “Braza dormida” (1928) e “Sangue mineiro” (1930).
A tese foi defendida em setembro de 1972. Na plateia, além de alunos, estavam Antonio Candido (1918-2017), Décio de Almeida Prado (1917-2000) e Lygia Fagundes Telles (1918-2022), mulher de Sales Gomes. O próprio Calil, que preside o Conselho da Cinemateca, estava ali.
“A minha reação foi positiva, mas eu era um graduando. Os alunos mais velhos, no doutorado, reagiram com muito estranhamento ao texto. Esperavam mais um farol, mas ele fez um mergulho histórico. Diziam que era um livro balzaquiano.”
Banca
Esta é a segunda história que “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” conta. O apêndice do livro reúne as observações de quatro participantes da banca: Alfredo Bosi, Francisco Luiz de Almeida Sales, Gilda de Melo e Souza e Walnice Nogueira Galvão.
“O Paulo Emílio sempre foi muito independente, ele não se submetia facilmente às regras. Ele cumpriu o que se esperava, pois o livro corresponde à formação do cinema brasileiro, coloca tanto ele quanto sua geração como intérpretes de certa cultura brasileira. O texto cobre o espectro integral da formação do cineasta”, argumenta Calil.
Em sua época, a tese teve mais repercussão na imprensa do que na academia. Com o ar dos anos, ficou esquecida. “Virou aquele livro importante que fica na estante, mas que não necessariamente se vai ler. É um livro que exige muito, pois é uma arqueologia.”
Há uma terceira história que não está nas páginas do livro. “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” não é apenas uma nova edição. Para ser fiel ao espírito do autor, Calil e a diretora Olga Futemma foram atrás dos originais da tese, encaminhados para a banca, para comparar “página por página” com a primeira edição da obra.
A equipe se deparou com imagens dos filmes de Mauro. “(Na edição em livro de 1974 da tese) As imagens estavam muito escuras, nem sempre se vê o que está acontecendo. Além disso, muitas estavam espelhadas, ou seja, do lado invertido. Agora as imagens estão muito nítidas, limpas, foi praticamente uma revelação”, comenta Calil. O processo envolveu outros profissionais ligados à Cinemateca, o que gerou uma nova descoberta.
“Como muitas das imagens (do livro) saíram dos filmes, uma parte da equipe se debruçou sobre as cópias que havia na Cinemateca.” Descobriu-se que o acervo da instituição tinha duas cópias diferentes de “Sangue mineiro”. “Como consequência desse trabalho, reconstituímos ‘Sangue mineiro’ (com sete minutos inéditos) e fizemos uma nova cópia digital, com a versão integral do filme”, conta.
Novos volumes
Carlos Augusto Calil afirma que ainda há ao menos dois títulos de Paulo Emílio a serem lançados pela Cia. das Letras. Todos os volumes têm o mesmo projeto gráfico. Os anteriores são “O cinema no século” (2015), com textos sobre o cinema internacional; a ficção “Três mulheres de três PPPÊS” (2015) e “Uma situação colonial?” (2016), com três ensaios sobre a produção brasileira.
“HUMBERTO MAURO, CATAGUASES, CINEARTE”
• Paulo Emílio Sales Gomes
• Companhia das Letras (640 págs.)
• R$ 199,90 (livro) e R$ 49,90 (e-book)